top of page

Caminhadas de Aconselhamento

 

Reconstruindo a vida

a partir do caos

 

 

    Adriana já fez mais de 50 sessões de aconselhamento. É segunda-feira, pós-páscoa. O encontro é numa sala com multifunções, duas cadeiras, eu atrás de uma mesa pequena.

    Ela é de estatura baixa, feições delicadas, sempre com atitude muita centrada para enfrentar as questões de sua vida.

   Quando a conheci eu lhe disse: “Gosto de pessoas com o seu temperamento, Adriana. Elas levam normalmente uma vida muito correta. E quando algo dá errado, são muito dedicadas para corrigir os erros.”

Adriana: “Ah pastor, o seu elogio não tem nada a ver comigo. Talvez a segunda parte. Mas para mim deu tudo errado na vida. Tudo. O casamento, a profissão. Estou com 50 anos e não faço a mínima idéia do que fazer de minha vida. Não sei nem qual poderia ser meu próximo passo. O senhor poderia me ajudar?”

Pastor: “Com certeza. O meu desafio é conquistar a sua confiança e sua persistência de vir a meu gabinete semana após semana por um bom período de tempo. Você verá, Adriana, como a sua vida tomará jeito!”

Adriana: “O senhor tem esperanças pra mim?” e não conseguindo segurar suas lágrimas: “Por favor, pastor, não me engane! Não desperte em mim esperanças que depois não poderão se cumprir!”

Pastor“Eu te afirmo perante o Deus eterno, que é aquele que vigia este momento: Tenha toda esperança do mundo em reestruturar sua vida. Ela tem jeito! Vai dar muito trabalho. Muito. Mas eu vou ter paciência e se você colaborar e fizer a sua parte você experimentará o sabor de uma vida nova!”

Adriana: “São palavras muito fortes, pastor! Mas eu não tenho nada mais pra perder. Sinto-me totalmente perdida e atordoada. Não sei nem por onde começar. Eu vou ousar confiar!”

    Esta conversa inicial aconteceu em outubro de 2017. Nesta páscoa de 2019 completamos em torno de 18 meses de tratamento. E muito, muito trabalho.

   Em um dos primeiros encontros eu pedi: “Adriana, tente me descrever sua situação! Por que seu desespero é tão grande?”

Adriana:

   “Meu marido acaba de me abandonar. Tenho duas filhas de 11 e 14 anos. Elas ficaram comigo. Mas isso não é o pior. Meu marido é que foi uma decepção desde o início. É verdade que abri os olhos só agora. Até então tentei ser uma esposa cristã que tudo suporta, tudo crê, mesmo vendo seus adultérios, só para manter, nem que fosse só de aparência, um casamento cristão.”

   “Mas quando ele foi embora é que comecei a me dar conta do estrago em minha vida. Eu era profissional, com consultório e uma carteira de clientes. Mas ele quis que eu abdicasse da carreira para cuidar da família. Cristã e submissa ao marido – é o jeito que entendi minha fé – abdiquei de tudo.”

   “Ele, sempre nervoso, irritado e exigente, me colocava o tempo inteiro sob pressão, sempre dizendo que eu estava fazendo tudo errado. Eu tentava melhorar, ser mais correta, para dar bom testemunho e ele não ter razão para reclamar.”

   “O comando dos negócios eu deixava por conta dele. Afinal era o homem da casa. Por vezes eu perguntava, pois sentia que os negócios não iam bem. Mas ele, curto e grosso, pedia para eu cuidar das minhas coisas e não me intrometer naquilo que eu não entendia mesmo.”

   “Lembro que em diversos momentos, quando eu estava em meio aos afazeres do almoço, criança pequena pendurada na saia, ele pedia para eu assinar uns papéis. ‘O que é isso?’ E ele: ‘Assina logo e não pergunta tanto!’ E eu assinava.”

   “Agora que ele me abandonou descobri que há em meu nome mais de um milhão de reais em dívidas. Não faço a mínima idéia do que se trata. Nunca fiz negócio nenhum. Pessoalmente sou muita cuidadosa com tudo o que faço. Com que cara, pastor, com que cara eu vou agora enfrentar estes credores? Eles vêm à minha porta, pedindo para eu pagar, e eu digo que não sei de nada. Eles olham incrédulos e apontam para assinatura embaixo do documento: ‘Mas esta não é a sua assinatura?’ E eu: ‘Sim, é minha assinatura, mas eu não sei de nada’. Pastor, como é que alguém vai acreditar em mim? Como é que eu vou me entender a mim mesma? Eu sei que assinei tudo isso, mas por outro lado a minha sã consciência diz que eu não tenho nada a ver com isso. Pastor, me ajude a me entender! Como é que isto pode acontecer?”

Pastor: “Adriana, eu acredito em você! Eu acredito 100% em você.”

Adriana: “De verdade, pastor? Há uma pessoa neste mundo que é capaz de não me tachar simplesmente como louca ou mentirosa?”

Pastor“Adriana, a sua caminhada vai ser longa! Mas eu vou te ajudar a descobrir como tudo isso veio a acontecer. E você vai descobrir também caminhos que vão te levar para fora deste lamaçal. Mas você precisará ser paciente e persistente!”

Adriana: “Pode contar comigo, pastor. Perdida como estou, não me resta alternativa.”

Pastor: “Adriana, vamos então deixar um pouco as confusões deste momento de lado e tentar entender a origem de tudo. Há uma raiz na base desta confusão. E esta raiz é anterior a seu casamento. Há algo torto em você, que cegou você já na escolha de seu marido.”

Adriana: “O senhor está dizendo que não foi meu marido que mudou ao longo do tempo, que ele sempre foi assim, eu é que estava cega para não enxergar?!”

Pastor: “Na grande maioria dos casos é assim: escolhemos o nosso cônjuge para, de certo modo, darmos continuidade a estruturas fundamentais que exercitamos em casa em nossa infância e adolescência. Deve haver exceções, mas das centenas de pessoas que já abriram para mim o livro da sua vida é isto que eu sempre encontrei. Você poderia, Adriana, me falar da sua infância e da vida em sua família?”

Adriana: “Não sei o que contar, pastor. Eu acho que minha infância foi normal e igual a de tantos outros. Não há nada que se destaque, nenhum trauma, nada de trágico ou excepcional.”

Pastor: “Para 100 pessoas que faço esta pergunta 99 dão-me esta resposta. Peço que você me permita então direcionar mais especificamente as perguntas para conseguirmos tirar o véu que encobre os acontecimentos e descobrir em que ambiente se formaram as estruturas de pensamento em você para que você escolhesse um marido assim e tomasse as decisões que tomou!”

Adriana: “O senhor pode perguntar o que quiser!”

Pastor: “Tente descrever a pessoa de seu pai! Como ele era? O que ele fazia? Como ele administrava conflitos!”

Adriana: “Por que o senhor está começando com a pessoa de meu pai?”

Pastor: “O pai sempre é o primeiro homem na vida de uma filha, o primeiro modelo. A filha se apaixona por seu pai e tende a reproduzir aspectos deste relacionamento com seu marido.”

Adriana: “Pastor, felizmente o senhor já conquistou a minha confiança porque senão eu levantaria agora e iria embora tão santa e sagrada é a figura do meu pai, tão alta e incomparável com o traste que se tornou meu marido.”

Pastor: “Você provavelmente tem razão, Adriana. E nada do que é verdade, nada do que é nobre e sublime será diminuído neste gabinete. Não permita isto! Manteremos em altíssima consideração tudo o que foi excelente e exemplar. Mas, por favor, estenda a mim um voto de confiança e permita que possamos olhar para a sua vida na infância em detalhes como você não o fez até agora e descobrir o que deixou você tão cega a ponto de dar o seu sim a um homem que você classificou como traste!”

    Nas semanas seguintes seguiram-se sessões em que minha aconselhanda precisou mergulhar em memórias há muito esquecidas, a descobrir facetas da sua infância que ela nunca tinha percebido. E ver, inclusive nessa figura tão amada de seu pai, falhas graves que tiveram influência determinante no modo como se encaminhou a sua vida.

    É dolorido e muito difícil abrir os olhos para a figura do próprio pai, da própria mãe e enxergá-los em seus lapsos, suas estratégias enviesadas, seu estilo de vida que anos mais tarde, eles já falecidos, não é possível mais aprovar.

    Um momento exemplar disso, eu tinha perguntado: “Adriana, como seu pai reagia em situações de conflito?”

    Depois de termos conversado durante várias sessões sobre sua vida familiar e ela já ter começado a perceber o quanto as coisas não foram perfeitas em sua família e que inclusive seu santo paizinho deixou a desejar, ela respondeu:

Adriana: “Tenho pensado muito sobre a minha infância e nossas conversas fizeram surgir em mim lembranças que eu tinha esquecido há muito. Lembro de uma situação bem típica para a reação de meu pai quando a coisa ficava difícil lá em casa. Sabe, minha mãe era uma pessoa muito complicada. E quando ela resolvia implicar com alguma coisa e começava a xingar, parece que não tinha nada que a segurasse. E o que fazia meu pai então? Ele se reclinava no sofá, fechava os olhos e sussurrava pra mim: ‘Deixa ela falar. Uma hora ela cansa’.”

Pastor: “Adriana, olhe bem para esta cena! Deixe esta cena passar novamente na frente de seus olhos! E tente captar o clima todo!”

Adriana: “Pastor, meu pai era médico, lá no interior de Goiás. Olhe e veja um homem muito bondoso voltando à noite para casa. Cansado, pois tinha ido visitar uma pessoa doente na roça. Trazendo uma galinha em uma das mãos, pagamento de consulta. A minha mãe vê a galinha – minha mãe veio do Rio de Janeiro, ela se via como uma dama da cidade – toma a galinha das mãos de meu pai e começa a xingar: ‘Outra galinha? Eu quero dinheiro! Precisamos de dinheiro! Vai pagar as contas no final do mês de que jeito?’ O que é que meu pai ia fazer? Tinha que atender a mulher doente na roça. E o único pagamento que ela tinha à disposição era dar uma galinha em troca. Ele chega em casa e sabia que tinha uma fera o esperando.”

Pastor: “O jeito que ele achou foi se reclinar no sofá, fechar os olhos e esperar a tempestade passar?”

Adriana: “O que é que o senhor queria que ele fizesse? Ele era a bondade em pessoa. Mas parece que o destino dele era viver com gente braba. O pai dele também tinha sido assim.”

Pastor: “Não é destino, Adriana. Ele escolheu sua mãe exatamente porque tinha se acostumado a este padrão na casa dele com o seu avô. E o que você fez seu pai? Continuou a história repetindo também na sua vida o mesmo modelo.”

Adriana: “Pastor, não é possível! É assim que as coisas funcionam?”

Pastor: “Jovens apaixonadas apaixonam-se sobretudo pelos defeitos do amado, que vão lhes permitir repetir o mesmo clima que vivenciaram em casa. Por isso a filha de pai alcoólatra tantas vezes procura alguém que vai tender para o alcoolismo. Uma das virtudes principais que minha esposa tinha em mente era encontrar um namorado que não acabasse sendo pastor como o pai dela. E veja o que aconteceu 15 anos depois que casamos.”

   Assim fomos juntando as peças do quebra-cabeça e entendendo o ambiente que estruturou a sua personalidade: “Não é um acidente, Adriana, este caos em que acabou a sua vida, mas resultado de escolhas e decisões suas, calcadas sobre as experiências de sua infância.”

Adriana: “Mas pastor, eu acho que não vou entender nunca: como pode alguém tornar-se adulto e passar a vida toda tomando decisões que mais tarde ele precisa reconhecer como opções que lhe são estranhas, contrárias a qualquer bom senso?”

Pastor: “Você, Adriana, felizmente acordou a tempo. Ainda dá pra corrigir muita coisa!”

Adriana: “Ah essa sua esperança, pastor, também me parece fora de lógica.”

Pastor: “Concordo! Mas ela está baseada na Bíblia, na Palavra. Continue a caminhada, sua vida vai tomar jeito!”

   Muitos encontros mais tarde, no primeiro encontro pós-páscoa deste ano, ela está novamente à minha frente:

Pastor: “Como foi sua páscoa, Adriana?”

Adriana: “Muito silenciosa, pastor. Minhas filhas participaram das celebrações na igreja e de reuniões. Eu estive muito em casa, reflexiva. O senhor eu estamos conversando há muito tempo. Posso dizer que passamos a minha vida a limpo. E nesta páscoa aconteceu algo muito bom. Agora eu vejo com muita clareza todos os personagens da minha vida, não só meus pais, mas também meus irmãos e meu ex-marido. E ouvindo textos bíblicos, as últimas palavras de Jesus antes da morte, sua submissão ao Pai, sua disposição de pagar o preço pelo pecado no mundo, não sei se o senhor me entende, mas desceu uma grande paz sobre meu coração. Eu chorei, mas eu consegui, sem forçar a barra, nominalmente perdoar o meu pai, minha mãe, meus irmãos e meu ex-marido. Que Deus cuide deles! Eu não me apego mais a nada. Minha vida está se reconstituindo, achei um emprego, minhas filhas estão andando com Jesus, a esperança tomou formas concretas em meu coração. Eu consigo crer agora que a minha vida vai tomar jeito. Graças a Deus!”

     Udo Siemens

bottom of page